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Marco Civil da Internet: desafios para o acesso à rede e para a liberdade de expressão online no Brasil

Por Flávia Lefèvre e Bia Barbosa (*)

Em abril de 2014, depois de muitos embates e disputas políticas, o Congresso brasileiro aprovou o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), que se tornou referência internacional de princípios para o funcionamento da rede no país e de garantia de direitos para seus usuários. Desde aquela época, dois aspectos do texto estão no centro de embates que, seis anos depois, seguem vivos: o princípio da neutralidade da rede e o da inimputabilidade da rede, que trata dos limites à responsabilidade de plataformas digitais, consideradas intermediários do conteúdo produzido por terceiros e que circula na Internet. 

Ambos já estavam presentes no Decálogo de Princípios para Governança da Internet, publicado em 2009 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), organismo com representação multissetorial e com a atribuição de definir diretrizes estratégicas para o uso e desenvolvimento da Internet no país. Ao lado da proteção de dados pessoais, eles formam o tripé que estrutura o Marco Civil da Internet (MCI). Apesar disso, e do consenso que sustentou a aprovação do texto, desde sua entrada em vigor há centenas de projetos de lei visando modificar o MCI e seus pilares. Mais que isso, até hoje tais princípios não foram efetivados no Brasil. 

No caso da neutralidade da rede, o quadro é de sistemática violação no Brasil. Isto porque as práticas comerciais das empresas que fornecem o serviço de conexão à Internet, com o respaldo da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), estão baseadas na oferta de planos que contam com a chamada “tarifa zero” para determinadas aplicações, predominantemente Facebook e WhatsApp. Com franquias de dados mensais muito reduzidas e preço alto para grande parte da população, esses planos permitem que, consumido o volume de dados previsto no pacote, o usuário siga acessando “gratuitamente”, tais aplicativos. A prática representa inequívoca violação da neutralidade da rede prevista no MCI, na medida em que implica em continuidade da autorização de tráfego associada à discriminação de pacotes de dados por aplicação, em confronto total com o texto legal.

Além de problemas concorrenciais, que fecham o mercado em torno de empresas norte-americanas monopolistas, os efeitos dessa prática têm sido decisivos para o aprofundamento das desigualdades e do fosso digital que maculam a democracia brasileira. Como divulgado recentemente pelo CETIC.br – órgão ligado ao CGI.br que produz estatísticas sobre o acesso à Internet no Brasil há mais de 15 anos –, esses planos são contratados por mais de 70 milhões de usuários. Trata-se da população das classes C, D e E, cujo direito de usufruir de um serviço essencial segue comprometido. No atual cenário da pandemia da Covid-19, o acesso limitado e de baixa qualidade à Internet tem efeitos ainda mais nefastos, com cidadãos de baixa renda sendo colocados em situação de maior segregação, impossibilitados de executar atividades de estudo e trabalho à distância e de se informar plenamente sobre os riscos da pandemia.

Infelizmente, resistir à sistemática violação à neutralidade da rede não é fácil, seja pela força das plataformas digitais e das empresas provedoras de conexão à rede, seja pela escassez de infraestrutura de telecomunicações no país. Num contexto de baixa concorrência e altos custos no setor, e de condições políticas que privilegiam medidas neoliberais – atribuindo ao mercado o papel, que é do Estado, de promover a universalização desse serviço essencial –, os planos de “tarifa zero” acabam sendo a única forma da maioria dos brasileiros seguir conectada, servindo de falsa justificativa para a desigualdade digital. 

Fundamental destacar que o favorecimento do acesso a determinadas aplicações também tem tido consequências sérias para a disseminação de campanhas de desinformação no Brasil, com efeitos determinantes em processos eleitorais no país, como visto nas eleições presidenciais de 2018. Ao terem acesso permanente apenas a aplicações como o Whatsapp, grande parte da população transformou tais plataformas em suas principais fontes de informação, deixando de lado, por falta de condições de acesso, a diversidade necessária em qualquer processo de formação de opinião. 

É nesse ponto que o direito à neutralidade de rede se cruza com o outro pilar do MCI que tratamos neste artigo: o da responsabilidade dos intermediários. No momento em que escrevemos essa coluna, o Congresso brasileiro se aproxima de uma votação que pode subverter o princípio da inimputabilidade da rede, ao obrigar redes sociais e aplicativos de mensageria privada a monitorarem conteúdo em massa para combater as chamadas “fake news”. Em 2014, como forma de promover a liberdade de expressão online, o Marco Civil estabeleceu que a responsabilidade das plataformas por conteúdos postados por terceiros passa a existir no momento em que recebem uma ordem judicial para removê-lo e não o fazem. Até aí, a responsabilidade por eventuais danos causados é do autor daquele conteúdo. 

O desafio é que, nesses seis anos, não só a plataformas passaram a adotar, por conta própria, muito mais medidas de moderação de conteúdo – baseada em seus termos de uso privados – como as redes de desinformação se multiplicaram em massa no Brasil. Assim, a resposta “mais fácil”, apontada pelos legisladores, parece ser a de responsabilizar tais empresas diretamente pelo que circula na rede. O resultado é o mais perigoso possível para a liberdade de expressão. Se mesmo não passíveis de responsabilização as redes sociais já abusam na moderação de conteúdo, removendo certos conteúdos injustificadamente e determinando, com base em algoritmos opacos, o fluxo de informação online, ao se tornarem legalmente responsáveis por tudo – como querem nossos parlamentares –, a censura privada será institucionalizada.

Dezenas de organizações brasileiras, como o Intervozes, tem atuado para garantir que os pilares do MCI sigam de pé em meio a esta encruzilhada. Não será aumentando ainda mais o poder das plataformas digitais sobre os conteúdos online que acabaremos com práticas de desinformação, discurso de ódio e assassinatos de reputações. O Brasil precisa garantir acesso plural e diverso à informação a seus cidadãos, precisa universalizar a conexão à Internet, precisa impedir que nossos dados pessoais sejam usados no direcionamento de campanhas de desinformação, como no criminoso episódio da Cambridge Analytica. E, mais do que nunca,  precisa fomentar a educação e uma relação crítica de sua população com a mídia. 

A indústria da desinformação, que opera com força no país, precisa ser desmontada. E, para isso, ampliadas as obrigações de transparência nos processos algorítmicos de moderação de conteúdo pelos provedores de aplicação. Mas o Marco Civil da Internet, ao contrário de um empecilho, segue sendo um aliado importante neste processo. Não é hora de abrimos mão dessa conquista. 

 

(*) Flávia Lefèvre é advogada e Bia Barbosa é jornalista; ambas integram o Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Flávia foi conselheira do Comitê Gestor da Internet no Brasil por seis anos; Bia Barbosa foi eleita recentemente para a próxima gestão do CGI.br.

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